sexta-feira, março 13, 2020

Trauma

Tamanha foi sua dificuldade
com a língua portuguesa
no colégio, que quando
adulto não sabia o que
era crase, mas conhecia
muito bem os hiatos.
Foi assim por todo a sua vida:
hiatizando o que era para crasear.
Morreu só.
A felicidade do corpo
Da mão na nuca
Dos cabelos na mão
Do revés do não
Do rosto no rosto
Do rosto na pele
Do lábio no lábio
Do dente no lábio
Do lábio na língua
Da língua na língua
Da língua no corpo
Do corpo no corpo
Do corpo na mão
Da mão espalmada
Sobre o ventre dela.
A beleza
da tristeza
se fez nascer
quando a felicidade
por maldade
gestante da dor
gerou o amor.
Cercando a lua
estão meus olhos
lavados de escuridão
atravessando nuvens
quebrando ventos
acordando as estrelas
que sonham distância
espantando os cometas
que vencem os séculos
Estão meus olhos
cercando a lua
implorando altura
num sentimento de posse
que o amor nos implica

E a lua - serena, calma
que não rejeita um amante sequer
me olha com seu grande
olhar de compaixão
e lacrimejando sua luz
sobre minha paisagem, diz:
-Hoje dormirei contigo.

Devaneio cotidiano

Por tantos sacrifícios cheguei aqui,
tantas guerras e revoluções,
tanta morte e tanta vida jogadas
mundo a fora - tudo vão.
Tudo:
O que eu não sei, o que ninguém sabe,
O que fingimos saber:
O que poderá se fazer?
Os minúsculos componentes da matéria.
Cada simples célula do meu corpo.
A infinitude do universo.
Há vida lá fora?
Há vida?
O sol ofusca meus olhos.
O azul do céu esbranquiçado
pelas nuvens deslumbra-os.
Mas ao voltar, vejo-me novamente
insignificante, burro e mesquinho
perante tudo.

Num mundo parelelo, o cigarro vai deixando
uma cinza cilindrica no cinzeiro
e a fumaça vai lentamente
se esvaindo no espaço.
Escondi tudo de mais
valioso que eu tinha
numa caixa de papelão
na parte mais alta
do armário mais alto
que tinha lá em casa

Todos passavam e
olhavam-na indiferente,
somente eu a fitava
orgulhoso por ser
o único que sabia
o que ela significava

O tempo passou e eu a
esqueci e a deixei ser
engolida pelas teias de
aranha e pelas traças

Um dia desses, curioso,
me dei o trabalho
de pegá-la e limpá-la
quase desmanchando
em minhas mãos:
Abri-a com cuidado:
chorei

XLIII

Eu não soube o que pensar... olhei-o...
Tinha muita fome e estava com frio,
No rosto alguma vertente de um rio
Que de tanto chover estava feio.

Talvez trouxesse algum amor no seio,
Talvez no peito ele tivesse um brio,
Ou talvez fosse só mágoa, sangue e ódio
E fosse de infinitas dores cheio.

Tinha dois companheiros de desgraça:
Era um cusco véio e uma cachaça:
O cusco amenizava a solidão,

A cachaça a fome, o frio e o tormento...
Aproximei-me devagar, atento...
E ele sussurrou: Prazer, sou João.

L

A lua alta cobrindo o firmamento;
O vento testemunha do meu pranto
E um manto estrelado num momento
Sente comigo o mesmo desencanto.

A madrugada fria, o tempo lento;
Meu sofrimento canta um triste canto
De quanto choro, dor e desalento
Que só sabe cantar quem chorou tanto.

E quando busco a causa disso tudo
Fico mudo e não sei o que em mim vejo:
Eu sobejo em mentiras e me iludo.

Estudo não saber o que desejo;
Calado arquejo - Penso o infinito:
Esse vazio imenso que em mim grito.